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quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Crítica

Por Sérgio Sálvia Coelho, autor, diretor, ator, homem de teatro, espectador essencial.

Vi O Primeiro Dia Depois de Tudo há poucas horas, aproveito para te escrever “a quente”. Acho que você (Leo Lama) tem uma boa peça nas mãos. Me deu a impressão, sobretudo no que diz respeito ao texto, que você disse exatamente aquilo que você queria dizer; é uma obra madura, não porque reflete uma suposta maturidade do autor ou por que se adéqua perfeitamente a um pré-modelo, mas por que só você poderia ter criado isso do jeito que está, e não poderia ser de outro jeito.

Gosto sobretudo da perplexidade que ela me causou (assim como gostei de ter saído perplexo do filme A Origem, que tem alguns pontos em comum com ela). Esse casal no limbo não renega as origens realistas, tem raízes no cotidiano com o sarcasmo melancólico que ainda ecoa o Dores de Amores. Os velhos e indispensáveis clichês (o aborto, a traição, a insatisfação com a arte) são reciclados por um deslocamento lírico muito delicado e preciso.

Fiquei aliviado por ver que você não caiu em um proselitismo místico cristão ou espírita (e não vai aí nenhum preconceito contra uma decisão que já foi a de Zé Vicente ou de seu pai). É que esse universo paralelo que você criou é rico justamente por ser precário e indefinido, não tem o urbanismo fechado e pasteurizado do Chico Xavier; esse seu (personagem) Roberto Alighieri não conta com nenhum Virgílio e por isso tem que improvisar. Por outro lado, a voz feminina é tocante no seu desespero e entrega, ela é bem mais madura e generosa que ele e aí também é um traço totalmente realista (nós, homens, somos realmente patéticos desse jeito). Me parece ser um texto que qualquer atriz adoraria dizer.

A encenação, que tira todo o proveito possível do espaço traiçoeiro do Vitrine, faz uma boa síntese das asas e da cadeira de rodas, da imobilidade e da liberdade infinita das rubricas faladas no condicional. Pela insistência na simplicidade, e na beleza do preto sobre branco recortados pela luz, cria boas condições para cunhar uma metáfora da nossa geração (me lembrou a cena do trapézio do Feliz Ano Velho).

A vinheta sonora do início é uma façanha técnica e permite um bom silêncio, mas me pareceu um pouco longa (por outro lado, talvez por isso mesmo ela produza uma angústia inicial importante para o deslocamento).

A partitura que você criou para os atores é minuciosa e coerente, e dá para ver o esforço deles em segui-la. Por outro lado, os dois me parecem um pouco imaturos para preencher tanta angústia. A simplicidade é a chave de tudo, e eles me parecem se deleitarem um pouco demais por sentir os olhos molharem e pela ousadia de encarar a platéia nos parênteses de distanciamento; fingem a dor que sentem, ou melhor, sinalizam o que já está presente. Mas estou exigente, sobretudo por que sinto a força original do que você criou; de todo modo, é raro ver alguém se permitir sofrer a dor do cotidiano em cena, sem apontar soluções. Posso imaginar que você tenha sentido o peso do privilégio de ser comparado a seu pai esses anos todos, compartilhando os objetivos, mas escapando da franquia (nada que o Vianinha e o Alexandre Dumas Filho não tenham passado). Enfrentar a ferida do melodrama sem cair no deboche nem no cafona é tarefa difícil, mas importante. Com esse texto, você prova que tem uma voz única, que ainda tem que ser ouvida bastante.

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