Leiam texto sobre Plínio Marcos aqui.

domingo, 31 de outubro de 2010

Se eu falar "Papai Noel", você já estará sendo manipulado!

Entre 1999 e 2001, eu passei por uma experiência inusitada, fiquei escrevendo minhas peças em uma agência de propaganda. Foi uma idéia do publicitário Celso Loducca, de ter um artista, no caso um dramaturgo, inquietando seus diretores de arte e redatores. Nem eu nem ele sabíamos o que eu estaria fazendo lá. Em princípio eu ficaria um mês, escrevendo peças de teatro e tentando provocá-los. Fique quase três anos, em uma das experiências mais fascinantes da minha vida. Inventei uma coluna diária chamada “O Palácio das Mentiras”, em que eu escrevia textos extremamente provocativos, falando sempre muito mal não só do trabalho deles, mas da vida que levavam, e acabei virando uma espécie de ombudsman da agência e das pessoas que ali trabalhavam. Muitos deles nunca tinham pisado em um teatro na vida. O bom é que eles me desmoralizaram muito também, me fazendo enxergar o quanto a maioria do que é feito em teatro é insuportavelmente chato. Na troca, aprendi a perder o preconceito, a conhecer o trabalho daqueles que sempre foram considerados os demônios da criatividade, aprendi a conviver com pessoas que precisam ter idéias 24 horas por dia, em um negócio extremamente competitivo e arriscado, no qual cabeças rolam o tempo todo e fazer sucesso com uma campanha é uma questão imprescindível para uma sobrevivência no mercado.

Alguns de nós, artistas, são muito mimados, divas de uma pseudo-ética, de um puritanismo falso. Precisamos perder certas ingenuidades, precisamos lembrar que o Papai Noel é como é por causa de uma campanha publicitária da Coca-Cola. Pois é, meus amigos, sinto ter que lembrá-los, mas quem criou a imagem do bom velhinho gordo, simpático e caridoso, vestido de vermelho e branco com uma cinta preta (lembrem da garrafa do refrigerante) foi o publicitário Thomas Nast, em 1920, em uma campanha paga pela gasosa mais bebida no mundo. Sem sentimentalismos, pensemos. Somos melhores do que eles? Nós queremos que nossas obras apareçam tanto quanto um dono de produto quer que seu produto apareça. Eu aprendi com as “putas da criatividade” que tudo pode ser feito diferente do que já existe o tempo todo. Essa mesma agência onde eu escrevi algumas de minhas peças foi capaz de criar recentemente um anúncio comestível, e outro em uma capa de revista em que você aperta um botão e fala direto com o produtor, conseguiu mobilizar a cidade no Projeto Cyan (que em grego quer dizer “a cor da água") da Ambev e pintar jornais e páginas da web de azul e muito mais. E nós, o que conseguimos de inovador quando queremos divulgar nossas peças, nossos livros, nossos CDs, nossos trabalhos artísticos? Até quando vamos ficar nessa ladainha de que precisamos de “gente famosa” em nossos projetos para chamarmos atenção? Por que não conseguimos inovar e apresentar uma criatividade genial quando queremos mostrar nosso trabalho? Será que não está na hora de pensarmos em nossas produções artísticas como um “job” de forma mais integral, desde a idéia até a colocação do produto no mercado de forma inovadora? E vale também perguntar, aí sim, nos diferenciando e muito da publicidade, se o que temos para mostrar é realmente diferente, de qualidade, e importante para o “consumidor” ou se nossa arte é apenas mais um objeto de consumo e entretenimento barato, que afirmamos que é bom só porque é nosso. Por que, afinal, qual é a função da arte?

Fazer propaganda não é vender uma marca ou um produto, é conhecer pessoas, conhecer como pensam as pessoas, como reagem psicológicamente às coisas, para que se possa manipulá-las, para que queiram comprar marcas e produtos. Então chegamos a uma questão ética, não chegamos? Devemos manipular pessoas para que saibam de nossas obras? Talvez, nossa criatividade na hora de divulgar deva ser pautada pelo conteúdo do que queremos mostrar. O que queremos mostrar? Não somos comestíveis, não somos um botão em uma capa de revista, não temos força para pintar o mundo com a cor da nossa arte. Então, o que somos? O que podemos fazer?

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Gente famosa

Leonardo Ventura e Priscilla Carvalho, atores que cada vez mais são reconhecidos pelo trabalho que fazem.

Quando estamos começando uma nova produção, quando estamos em cartaz com alguma peça, quando pensamos em realizar algum projeto, quando vamos conversar com algum patrocinador, quando temos alguma idéia, nós, os artistas, estamos sempre assombrados por um fantasma. Embora possamos classificá-lo como “a quimera da mediocridade” ou “a assombração da injustiça”, ele tem nome, e precisa mesmo ter, porque é do nome do fantasma que estou falando. A necessidade de um nome conhecido. Falo do talvez insolúvel problema de ter ou não “gente famosa” no projeto. Gente que faz novela, programa, eventos, aparece em jornais e revistas, e tudo que faça com que uma fuça apareça para um público que se importa muito mais com quantidade do que com qualidade. Sim, podemos pensar que os bons do ofício se destacam e, portanto, ficam famosos, mas, isso não é uma verdade lógica no que diz respeito à fama, é? Há muita gente aparecendo que não tem o menor talento nem a necessidade de aparecer, a não ser por vaidade própria. Ao contrário, muitos dos que aparecem precisariam ser escondidos, porque é vergonhoso quando uma pessoa repleta de incompletude e cheia de boçalidade se auto-intitula aquilo que não é. Ser ator ou atriz, quase todo mundo é, ou já foi alguma vez no teatrinho da escola, escrever todo mundo escreve, ainda que mal, e se pode pintar, dançar, cantar, mas ser artista em uma pesquisa artística, poucos são. Talento não é propensão, insistência teimosa não é vocação.

Nas classes mais baixas e entre os ignorantes (e uma condição não é sinônima da outra), fica mais evidente ainda: quem aparece na televisão ou em uma novela da Rede Globo é muito mais respeitado como artista do que quem tem um trabalho sério e profundo de pesquisa no campo da arte. Nas classes mais altas (os donos do poder e do dinheiro), os chamados artistas famosos são vistos como putas que servem para divulgar uma marca, uma empresa, um produto ou criar uma tola condição de status. Em nosso maravilhoso país é preciso fazer lobby com aproveitadores, diretores de instituições entediados, programadores culturais que pouco sabem do assunto,  para se conseguir fazer arte. Os desconhecidos da mídia praticamente precisam pagar para fazer e aparecer.  Os artistas não são respeitados pelo que fazem e apresentam, mas pelo que representam na mídia. Tal prática parece ser uma prisão desanimadora para quem está começando e como perspectiva única de sucesso só tem a possibilidade de tentar de tudo para ser famoso. Isso não é choro de despeitado, é uma constatação antropológica: vivemos em um tempo de distorção de valores e de perversão social, e já não é de hoje.

Mas, cabe ao público, mediocrizado por informações distorcidas, alimentado por uma indústria rentável e às vezes maldosa, não se deixar enganar. Aos que poderiam ter uma Arte Ética, de acordo com uma vida ética, cabe aumentar seus recursos de inteligência crítica e se defender da unanimidade burra e do pensamento pasteurizador. São os espectadores que devem ousar, ir atrás do desconhecido, do que nem imaginam que exista, mas existe, do que é bom , mas não está na TV. Do que tem qualidade, mas ainda não foi encontrado e estragado por um senso comum que nivela tudo ao gosto das indústrias de massas. Acreditem, espectadores, há vida fora da televisão. Caso não encontrem, exijam.

O que eu devo fazer quando termino de escrever uma peça? Com quem devo montá-la? Preciso sobreviver, pagar contas. Já passei por algumas experiências, sei de algumas diferenças. Vi o dinheiro entrar na minha conta de um jeito avassalador quando minha peça foi montada por famosos, vi o teatro à míngua quando excelentes atores “desconhecidos” montaram. O que dizer para quem quer fazer teatro hoje? O que dizer para um jovem ator? Devo dizer para ele levar uma fita a uma emissora de TV, uma daquelas fitas (sou do tempo das fitas, hoje é Dvd) sem qualidade artística que se empilham na mesa de algum produtor de novela que abusa de um poder que não tem? Como fazer teatro sem precisar depender da TV? Me ajudem. Por que vocês não lotam um teatro grande quando não há "gente famosa" no elenco, ó espectadores?

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Des

Na porta do abismo da morte cotidiana estivesse a relação sexual sã. Pernas, fossem braços, abertas como abraços e ter o Chi dentro de si. Não gozassem babas os amantes, despornografias se lhes assumissem, fossem pureza úmida a circular entre corpos. Deu-se a cama: nós. Agora diante de um o outro e a perplexidade. Se não soubessem, se nunca dantes, se nada prévio a porvir. Virginando-Si. Desestupros. Se não vertessem o gozo mais espesso, engolissem livros, se línguas se reconhecessem em longo lago. A tarde toda: Tao. Se fazer amor. Caminhar sobre as peles com as mãos, diminuir os sentidos: cegar-se. Des-ver, desvendar, revelar. A luz do crepúsculo, o lençol formando formas de movimentos, buscas, suores advindos de desejos rituais. Caçar com a boca. Os buracos, as chaves de fendas, os mistérios: o que penetra, o que se nos invade, o que despe, o despudorado, o desinibido, o desmascarado, o desconhecido. Agarrados todos os bichos em medo e vertigem fossem cair, sumir, desintegrar, virassem força. Que fossem gente os amantes.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Rodeio das Gordas

Boa tarde caros colegas! Perdoem-me o transtorno, mas é necessário fazer uma denúncia, um protesto. Sou aluna da Universidade Estadual Paulista, Campus Assis, e é com imensa indignação que venho manifestar minha vergonha e meu ódio por ser obrigada a partilhar dos mesmos espaços que certos alunos. Todos os anos, nossa Universidade organiza um grande evento que teria por finalidade integrar os estudantes dos diversos campos com atividades esportivas e festas. No entanto, no último InterUnesp,(se não me engano, realizado nos dias 10, 11, 12 e 13 de outubro) na cidade de Araraquara, pessoas que possuem um estereótipo físico disseminado como incorreto em nossa sociedade saíram de lá estigmatizadas e humilhadas.

Trazido dos rodeios convencionais para a festa universitária por alunos do curso de Engenharia Biotecnológica da UNESP de Assis, o “Rodeio das Gordas” foi a forma de diversão encontrada por esses e outros alunos de outros cursos durante as festas de 2010. Os praticantes, autodenominados “peões” abordavam garotas gordas e as agarravam ou mesmo montavam em cima destas enquanto seus nobres amigos de rodeio o observavam para um posterior julgamento. Acumulava maior número de pontos aquele que conseguisse segurar a garota (enquanto esta se debatia) por mais tempo. O vencedor, ao final das festas ganharia um quite com bata e caneca oficial do “Rodeio das Gordas”.

Uma comunidade no orkut foi criada para disseminar a ideia e para que os supostos “peões” pudessem trocar experiências e técnicas desenvolvida com as “bandidas”, termo utilizado por Daniel, mais conhecido como “Cogu”, membro da comunidade para referir-se às garotas as quais agarrava violentamente. Além de agarrar, nossos caros colegas, de antemão justificavam à garota o motivo pelo qual esta teria sido escolhida : “Escolhi você por ser a garota mais gorda que já encontrei”.

Apesar de a iniciativa ter surgido de alunos de Engenharia Biotecnológica, por enquanto sabe-se com certeza que alunos dos cursos de Psicologia e Ciências Biológicas também participaram dos atos. Agora pergunto-me e pergunto-lhes: Que espécie de psicólogo será este que inescrupulosamente comete brutalidades físicas e PSICOLÓGICAS contra outros seres humanos? Que tipo de professor será este indivíduo estudante de biologia, capaz de acabar com a vida de um aluno após um ato de bullying em sala de aula?

Como uma amiga disse, assim como o Holocausto, o Rodeio das Gordas deve ser lembrado e discutido constantemente. Para que nenhuma outra pessoa sofra tal humilhação, manifestações e intervenções devem ser feitas frequentemente no intuito de conscientizar as pessoas sobre tais práticas, as quais precisam ser sempre relembradas com asco e para que cada praticante ou conivente com os atos brutais envergonhe-se todos os dias ao pisar no solo sagrado da diversidade, respeito e liberdade que é a Universidade, em especial, a Universidade Estadual Paulista - Campus Assis.

Mayara da Silva Curcio, graduanda em Psicologia pela UNESP – Assis.

domingo, 24 de outubro de 2010

Casais são legais

Casais gostam de criticar os outros casais. Casais gostam de brigar. E gostam de dizer que não vão mais brigar. Casais têm manias. Casais se chamam por estranhos apelidos e diminutivos. Casais se xingam pelas costas ou pela frente mesmo e usam alguém que os conhece como interlocutor de sua intimidade devassada. Se uma das partes pedir a sua ajuda ou conselho: não dê. Não tome partido. Não concorde quando uma das partes disser que a outra não presta. Pondere. Casais podem fazer as pazes antes de você elaborar a briga deles e podem acabar ficando contra você. Casais são traiçoeiros. Casais podem ter amantes. Casais acham que são melhores do que outros casais ou acham que são piores do que outros casais. Casais são auto-referentes. Casais são iguais aos outros casais. Não é recomendável dar pipoca aos casais. Casais precisam de programação. Casais encontram dificuldade para escolher aonde vão comer. Acusam-se mutuamente de não ter iniciativa. Uma das partes está sempre interferindo na vida da outra. Sempre dizendo o que deve e o que não deve fazer; como se soubesse. Casais são invasivos. Casais são ciumentos. Casais são possessivos. Casais são largados. Casais engordam. Casais gostam de chalezinhos e pousadinhas. Casais se separam e formam outros casais. Como bactérias infestam o ar das pizzarias. Casais saem pra jantar com outros casais e conversam coisas de casais. Casais reproduzem-se e os filhos de um casal podem virar um casal com os filhos de outros casais. Casais vão ao Shopping Center. Casais vão ao Lar Center. Casais vão ao Promocenter. Casais fazem planos. Casais sonham iguais a outros casais. Casais discutem seus relacionamentos e seguem se relacionando em desacordo com suas discussões. Combinam o que não cumprem, toleram o que não suportam, se tornam o que não queriam. Casais constroem o amor, como pedreiros. Casais querem segurança. Casais dizem que amam. Casais param de dizer que amam. Casais não sabem se amam. Casais esquecem porque se amavam. Casais se juntam porque percebem que têm tudo a ver um com o outro. Casais se separam porque percebem que não tinha nada a ver. Casais são legais. Dentro da lei. Ordem e Progresso. Amém.

sábado, 23 de outubro de 2010

O Leopardo das Neves

A peça "O Primeiro Dia Depois de Tudo", pra mim, é como um mantra orgânico. O corpo dos atores nos conduz a uma viagem pelas sensações. Gal Oppido, fotógrafo, espectador essencial, depois de assistir pela segunda vez.

Durante quase todo o ano o animal, no Himalaia, fica afastado de duas semanas a três dias de distância do outro de sua espécie. Cada um em seu território, buscando a sua caça, cuidando da sua fome. Existir solitário. Pernas fortes, patas largas, músculos cobertos por pele grossa e pêlos malhados que se misturam com as rochas quando não está nevando. Na brancura do gelo é a sombra amarelada e lânguida, salpicada de estrelas escuras.  Vida a espreita da carne. Até que abocanha: sangue no tapete alvo. Mordidas. Comer e acasalar. No tempo do acasalamento dá-se então a dança erótica dos grandes felinos. A fêmea esfrega o rosto nas pedras e urina exalando seu desejo. Sobe a íngreme jornada da espera. O macho desavisado sente o cheiro. Agora é viver para penetrar. Ainda desorientado ele precisa de mais sinais. Ela, no mais alto da montanha clara, geme o canto do chamado. Todos, de todas as laias e raças, sentem o coração tremer. Mas, o Leopardo das Neves, sabe que é com ele. Babando, em subida afoita, ele a encontra cheirando corrimento denso. Dançam no cume o balé dos corpos de sede, pele com pele, pêlos ouriçados e tudo é inesperadamente doce entre esses animais que destroçam espinhas, cravam dentes em vísceras e quebram pescoços. Ele a penetra.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Ainda sobre casamento: troca de perguntas

Conversa com uma leitora do blog

Pergunta dela - Gostei muito da idéia de "integridade harmônica" e de "unidade entre alma e espírito". Concordo com os "esbarrões", que são constância por aí. Existem aqueles que duram anos, parecendo grandes encontros para aqueles que os vivem e para aqueles que os testemunham, os legitimam como tal. Mas me/te pergunto como reconhecer a "inteireza", a "completude" - em nós e no outro - num mundo que exige do ser uma miríade de comportamentos (que promovam soluções), em que o espontâneo dura apenas segundos, nem sempre reconhecido em sua singularidade? Como ir além das personas, tão bem articuladas e que demoram pra se mostrar apenas papel, caricatura de origami?

Pergunta minha – Bem, considero sua pergunta essencial. E vejo que na própria pergunta, há uma resposta embutida, não? Será que não reconheceremos a completude íntegra, em nós e nos outros, quando aprendermos a separar mundo de vida, sociedade de interioridade? E se ir além das máscaras for justamente, e apenas, ira além das máscaras? Como? Podemos nos desmascarar? E se o encontro, consigo mesmo e com os outros, for uma questão de subtrair-se e não de aparecer? Será que não estamos em um momento justamente de abrir espaços para que os encontros se dêem entre grandezas maiores do que nós? Que tal se o amor encontrasse com o amor e a generosidade encontrasse com a generosidade e a humildade com a humildade e não nós com a gente? E se o que nos desmascarasse e nos fizesse brilhar fosse o potencial de virtudes que temos em nós e não nossa personalidade trabalhada?

Pergunta dela - Seus anjos têm asas incólumes que se equilibram em cadeiras de rodas, imóveis. Concordo com você, acho que temos asas, mas não nos damos conta, não as usamos. Não as reconhecemos, nem as nossas próprias, nem a dos outros. Creio que seja por medo. Justamente porque não existe preparo ou completude para o amor. Por conta de tudo isso - como reconhecer que um esbarrão não é um encontro?

Pergunta minha – E se a diferença estiver no fato de que o esbarrão derruba e o encontro eleva? E se para que haja o encontro seja preciso derrubar?

Pergunta dela - Você fala em desejo, em aliança com teor sagrado - muito lindo, onírico, até! E pensa em votos declarados. Os votos, ao exporem a inteireza, não anulam o desejo? Não impõem limites? Talvez não seria melhor o silêncio? Talvez ele seja essencial para que haja o reconhecimento do desejo pelo que ele é - chama. Ou para o (re)conhecimento do outro - no escuro ou no claro, somente como sopro, que ritmado, conforma-se e combina-se ao do companheiro. Dúvidas, essas sim, nos imobilizam.

Pergunta minha – E se o ritual for justamente a produção do silêncio? E se ainda confundimos não falar com silenciar? E se forem as certezas aquilo que nos imobiliza? E se for a intuição o que nos faz ser? E se for abrir espaço para ela o nosso trabalho?

Pergunta dela - "Para isso escrevo minhas peças de casais, para achar minha integridade, meu casamento interior". E te pergunto: funciona?

Pergunta minha – É o que me pergunto.

domingo, 17 de outubro de 2010

Sobre Casamento

Penso que para podermos encontrar outrem, meus companheiros de solidão, um outro inteiro, pleno, integro, é preciso que já tenhamos realizado em nós mesmos a unidade entre a alma e o espírito, entre a mente e a intuição, entre a psique e o nous. Não se trata de procurar a outra metade, mas o inteiro que nos harmonize. Há muitos encontros de metades, e tais resultam em novas partidas, como se procriassem a fragmentação, a separação. Não é o que temos visto? Poucos são os encontros, muitos parecem ser os esbarrões. A integridade não é moral, é harmônica. O encontro é entre a Sofia e o Logos, entre Yeshoua de Nazaré e Miriam de Magdala, o casamento simbólico que existe em cada um de nós: a união entre a Luz e a Vida. Jesus nos lembra no evangelho que somos capazes de amar o outro não somente a partir da nossa sede, mas, principalmente, a partir da nossa fonte. Portanto, o verdadeiro nubente, o companheiro perfeito, não pede ao outro que tape seus buracos, não exige que ele preencha uma falta, mas que desfrute de uma completude. Assim se pode amar alguém sem que se roube uma parte de sua integridade. Talvez, o mais preciso voto de casamento, ou a maior declaração de amor que se possa fazer, consista em dizer a alguém: “Eu não tenho mais necessidade de você, eu posso viver muito bem sem você, eu estou muito bem sozinho (e isto é fundamental que aconteça em cada ser), mas escolhi viver com você.” Assim, não estamos falando em carência, mas em desejo. Nesse tipo de aliança existe algo de sagrado.

O masculino não é um atributo de um macho, o feminino não é o atributo de uma fêmea. Ambos os atributos completam um ser. A relação não é entre homem e mulher ou entre seres do mesmo sexo. Não é uma relação baseada em jogos mais ou menos sados-masoquistas de sedução e dominação que costumeiramente se apresentam como sintomas dos casais modernos. Estamos falando de uma relação entre duas singularidades, ou seja, entre dois seres casados em si mesmos.

Para isso escrevo minhas peças de casais, para achar minha integridade, meu casamento interior.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Crítica da Folha de São Paulo

Foto de Lenise Pinheiro.










Leo Lama alça voo alto com texto a respeito de anjos caídos

CHRISTIANE RIERA
CRÍTICA DA FOLHA

O mais recente espetáculo escrito e dirigido por Leo Lama, "O Primeiro Dia Depois de Tudo", vai além do objetivo de investigação em nova dramaturgia a que se dispõe. Parte de um projeto de pesquisa batizado de "O Ator em Repouso", em que o congelamento dos movimentos no palco catalisa o texto, a montagem alça voo alto através de jorro verbal e mantém-se planando livre no ar. A presença de dois atores em cadeiras de rodas, interpretados com brilhante retenção por Priscilla Carvalho e Leonardo Ventura, cria um clima com pouca visualidade e intensa sonoridade. Toda a encenação acentua uma condição de paralisia que potencializa a escuta do texto. O casal narra trechos que apontam para uma trama envolvendo uma possível traição, um aborto iminente e eventuais vazões para um bar do teatro e uma livraria. "Não é o pensamento a nossa prisão?", eles se perguntam. A resposta vem em linguagem libertadora, que acontece no cruzamento entre o sublime e o profano. Imerso em clima de ritual ou de rotina, o casal detém-se em assuntos como o pagamento de condomínio ou o futuro dessa terra "de minhocas e das mesquinharias". Em contraponto à abstração do discurso, a peça flutua em constante tentativa de materialização dos personagens. Sutis referências canônicas e temas cristãos são tratados com ambiguidade. Afinal de contas, assistimos a anjos que acabaram de cair ou a figuras no limiar do final dos tempos? Uma micronarrativa através de mudras indianos em final inesperado nos revela o poder de observar algo físico no palco. Reiteram que, apesar da beleza dos gestos, é possível haver o mesmo impacto em dramaturgia.

O PRIMEIRO DIA DEPOIS DE TUDO

QUANDO qui. e sex. às 21h30; até 26/11

ONDE teatro Imprensa (r. Jaceguai, 400, Centro, tel. 0/xx/11/3241-4203)

QUANTO R$ 20

CLASSIFICAÇÃO 14 anos

AVALIAÇÃO bom

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Olhares e Visões

O Espectador Essencial é aquele que tem a generosidade de revelar seu olhar e nos tirar do escuro solitário de nossa própria sensação. Arte se faz em eucaristia: exercício e contemplação.

Os Olhares:

Nova experiência. Vi o espetáculo "O primeiro dia depois de tudo" semana passada. Foi uma experiência nova para mim que, até pouco tempo atrás, chamava espetáculo de "Show". Não conhecia o autor, diretor, atores e nem o teatro. Para mim o texto trabalhou bem os sentidos da audição e da visão, mas também um outro sentido que se mostrava dentro de cada um nos silêncios. Dentro de mim lembrei, repensei, lamentei, sorri, me expandi, estagnei, respirei, perdoei,voei. Embora seja a frase que me lembro, "Mais rituais, menos rotina", não foi a frase que mais mexeu comigo. Houve outras que não lembro, mas que sei que foram mais importantes pelas emoções que causaram naquele momento. Em algum lugar dentro de mim, jamais serão esquecidas porque me trouxeram algo. A luz penetra na escuridão, mas o oposto não ocorre. Tudo vai ficar bem, foi a mensagem para mim. Drama? Não! Vida real, e nela tem de tudo. Meu namorado, sonolento da lida, não discutiu a peça comigo. Preferia uma comédia. Não conseguia ver que tinha isso também na sua frente. Ainda penso e tento entender o objetivo da arte que vem ao mundo através de alguns que conseguem ver mais além e tem a bondade de dividir. Estamos todos aprendendo o tempo todo. Obrigada pelo tempo (temos tempo?) e pela nova experiência. Grata.

Regiane Mendes, espectadora essencial.

A doçura e as facas de sashimi. Fui, vi, adorei. Pensei tantas coisas sobre o que vi. Nenhuma delas de forma ordenada. Todas, em profundo silêncio, no caminho de casa, que descobri ser lugar nenhum. Quantas interrogações me subiram à cabeça. Fervo. Neurose e doçura são duas medidas do que todos nós somos e o autor captou isso de forma cáustica e doce, frágil, em certa medida. O texto elétrico só podia estar combinado com o repouso do ator, ou imobilidade, como queira - só entendi toda a discussão do antiblog depois que vi o espetáculo. Priscila-Beatriz me arrebatou. Tenho medo de dizer: "Lindo, o espetáculo!", mas já está escrito.

Andrea Scola, professora, historiadora, espectadora essencial.

Asas. Eu fiquei muito emocionada com a peça: O Primeiro Dia Depois de Tudo. O que tenho a dizer é que carreguei aqueles pares de asas comigo. Ao Leo Lama, parabéns por seu olhar sensível como diretor. É tudo tão profundo que você se sente um pouco Beatriz e Roberto. E aquela música: “As coisas deveriam morrer...”, ficou na minha mente.

Sílvia Diaz, atriz do núcleo experimental dos Satyros, espectadora essencial.

Leque. Estive novamente na Sala Vitrine para ver o espetáculo "O Primeiro Dia Depois de Tudo" no qual somos intimados a fazer parte da experiência apresentada. A peça nos abre um leque de possibilidades na hora da reflexão. Beatriz e Roberto são levados a retornarem ao plano da experiência em que fracassaram para um trabalho de reajustamento. Após a resignação e com a intercessão dos amigos, ou seja, dos anjos, alcançam a paz. Senti a platéia bastante contraída, poucos risos, alguém se emocionou muito. A peça é muito boa, o trabalho é muito bom: os atores, a equipe. Parabéns a todos!

Lenice Brito, professora, espectadora essencial.

Suco de Vísceras. Confesso que no começo do espetáculo fiquei sem entender o que estava acontecendo. Mas, quando a luz acendeu fixei meu olhar nos personagens. Teve um momento bem forte (quando a Beatriz falou de fazer um suco com suas vísceras), dei um pequeno sorriso, senti o olhar dela, tive vontade de dar uma gargalhada. A peça tem uma sintonia muito forte com a platéia. Gostei muito.

Talita Brito, estudante, espectadora essencial.

Foto de Heloísa Bortz.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Poético

Leonardo Ventura em foto de Felipe Hellmaister.

Vi o espetáculo “O Primeiro Dia Depois de Tudo” há duas semanas e foi uma experiência surpreendente. Não conhecia o trabalho do autor e diretor, só conhecia a pequena sala do Teatro Imprensa, que exige flexibilidade de encenação. Gostei muito da dramaturgia, pela abordagem do "estado contemporâneo" de existir, que apesar de aflitivo, no espetáculo não deixa de ser poético. A relação das personagens não cai no drama do confinamento das questões de casal de maneira nenhuma, são dois anjos, que têm um universo compartilhado. A encenação na estreita sala é genial, a opção pela imobilidade potencializa o interior das personagens e amplifica o espaço ao redor delas.

Por Luanna Jimenes, atriz, espectadora essencial.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Escuro Claro

Priscilla Carvalho em foto de Heloísa Bortz.

Todo símbolo tem sentido duplo. A palavra “luz”, em árabe, Nûr, um dos nomes de Alhah, que começa com a letra do alfabeto árabe nûn, (cuja forma é o de uma barca, um cálice) tem seu simbolismo ligado ao Profeta Jonas e ao ventre da baleia, que é escuro, traz em si a ambigüidade, pois toda luz requer escuridão para ser enxergada e dela nasce. O expelir do Profeta do ventre da baleia simboliza justamente um renascimento e tem muito a ver com minha peça, que é um grande ventre escuro onde a Luz é gestada e parida no final. Toda criança é gerada na escuridão. Minha peça fala dessa gravidez, desse limbo que é a espera da Luz, do primeiro dia. O símbolo é poderoso e precisa ser entendido. O estado que eu tentei criar com a peça é o do mundo intermediário, que, supostamente se dará depois da morte, estado do Bardo (como dizem os tibetanos), do Barzak (como dizem os árabes), estado comum a todos, mesmo em vida, por representar a transição, o entre. Minha idéia é que o espectador precisasse o tempo todo estar em um estado de busca de discernimento para poder interagir com a peça. Buscando discernir, buscando achar a luz, em vez de estar em um estado passivo, de receber tudo pronto. As asas estão, a paralisia está. O que seguir? O que enxergar? Discernir. O ator é o intermediário, a ponte, o istmo entre os dois mares, o das trevas e o da clareza. O ator deve produzir o intercâmbio entre esses estados e a platéia. Está na capacidade dos atores de produzirem a luminosidade o segredo dessa peça. Nós estamos o tempo todo trabalhando duro para tentar conseguir isto. A cada pulsação de um barzak se produz uma transformação da luz vital. Expansão e contração, afirmação e negação, exatamente como são os movimentos do corpo dos atores na peça e o da criança no útero e o do coração, que é o molde do sujeito. O coração é o mediador entre as esferas do Espírito e a alma individual. A peça tem o movimento da respiração, das ondas, dos fluxos: do coração. Paralisia e vôo.

Precisamos de um espectador imbuído de olhares investigativos e não de moralismos psicológicos e precipitados.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Mais Rituais, menos Rotina

Foto de Heloísa Bortz.

Não sei nem por onde começar. Assistir à montagem gerou um bate papo de mais de duas horas entre eu e meu grande amigo Sandro, não parávamos de falar sobre as variadas percepções que O Primeiro Dia Depois de Tudo provoca. A começar pela trilha sonora do início da peça. O fato de trabalhar apenas um dos cinco sentidos, a luz apagada e aquela viagem de músicas interligadas, impressiona e causa impacto. Parabéns a Leo Lama e a Paulo Prestes Franco que fizeram tão boa seleção.

No debate, após o espetáculo, todos falavam e falavam e eu tinha vontade de falar em cima, mas contive meu ímpeto de comunicadora. Preferi me calar. Alguns falavam da tal “obscuridade da peça”, não perceberam que o escuro é simplesmente visual. Onde estava a percepção do povo em relação ao que provoca o texto ácido (característica mais que marcante desse tal de Mr. Lama) e imagético que nos guia ao extra-sensorial? É preciso perceber aqueles dois atores tão talentosos se expressarem quase que o tempo todo apenas com palavras e olhares, paralisados naquela cadeira de rodas, com limitações físicas, mas não mentais ou expressivas. Essas são as verdadeiras asas. Isso me fez pensar em compaixão, em cumplicidade, em AMOR. Coisas tão importantes que se perdem no dia a dia e empobrecem as relações humanas. São tantas formas de se comunicar e nos esquecemos de olhar no olho, da importância de um sorriso, de um bom dia, de parar completamente o que se está fazendo em um dia turbulento e ver o sol se por no caos da cidade. Tentar praticar o simples da vida, viver com o básico, sem luxúrias e excessos. A isso nos remete a peça e a proposta do Ator em Repouso, que recusa o burburinho corporal e refina a expressividade, nos fazendo sair refletindo a luz da mente clara. A GENTE PRECISA DE RITUAIS E NÃO DE ROTINA. Esta e outras falas da peça, não saíram da minha mente nos últimos dias. A prisão mental nos faz esquecer as decisões do coração. A luz só existe por causa da escuridão.

Paula Scarpato, do marketing estratégico da showlivre.com, espectadora essencial.

domingo, 3 de outubro de 2010

A Dança

Leonardo Ventura e Priscilla Carvalho executando Mudras tradicionais indianos, em coreografia de Zuzu Abu. Foto de Heloisa Bortz.

E começou tudo no escurinho do cinema, ops!, digo, no teatro. Uma colcha de retalhos musicais é ouvida no escuro contando uma história que vem dos anos 60 até os dias de hoje. E, ao mesmo tempo, tal história não é contada DE FATO. Que bom! É nos vazios e nos intervalos que as estórias são mesmo contadas. (E por que é tão difícil conviver com a dúvida e com a angústia hoje em dia?).

A luz acende e aparecem os personagens "presos" em suas cadeiras de rodas com asas em suas costas. Isto é forte. Essa sensação de impotência, de poderem voar, e ficarem ali, estancados. Mas... Que lindo! Mesmo assim, mesmo depois de tudo (o que foi tudo que aconteceu que os fez tetraplégicos? pouco importa.) eles ainda podem VOAR!

O tempo passa e vê-se a incomunicabilidade: eles falam um com o outro, e muitos são os diálogos possíveis, mas um fala A o outro responde B.  No entanto, é justo no momento não verbal que eles de fato se comunicam. Nos gestos finais,  no silêncio dos Mudras, eles  "falam" a mesma coisa, a mesma língua. É a dança que comunica além do verbo, sempre. Na dança e no silêncio, sem o verbo, se revela a comunhão do casal.

Adorei a parte em que os personagens discutem um possível aborto, em meio a gargalhadas. Descontextualização maravilhosa. A tragédia é uma puta comédia mesmo e sempre afinal.

Para mim, leitora do Tao-Te -King, IChing, Confúcio e afins, o mais difícil é entender a tal da não-ação. A experiência de ver os personagens o tempo todo sem se mexer, a dificuldade que deve ser para os atores passar a energia toda só com as expressões faciais... Muito bom. Os Atores são muito, muito bons. O alter-ego do autor está perfeito, até o mesmo nome, caramba!

Já disse demais. Hora do silêncio e da Não-Ação.

Por Sonia Andrade, arquiteta, espectadora essencial.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O Apocalipse como revelação do momento presente

Crítica, por Dinah Césare em http://www.questaodecritica.com.br/2010/10/o-apocalipse-como-revelacao-do-momento-presente/

Um futuro que poderia ter acontecido – uma tensão temporal que formaliza as possibilidades de um desejo que já nasce morto. Essa é a composição da dramaturgia dos personagens Beatriz e Roberto que se expressam pela ironia e incerteza do futuro do pretérito em O Primeiro Dia Depois de Tudo, escrito e dirigido por Leo Lama, em cartaz na sala Vitrine do Teatro Imprensa em São Paulo. A atualidade do combate entre os efeitos causados pela presença e pelo sentido formaliza a dramaturgia e a encenação como escritas de um único fôlego que evidenciam uma espécie de necessidade de salvação da transitoriedade.

A questão crucial da peça parece ser justamente sua intervenção como poética permeada por uma composição simbólica que, se por um lado é quase inevitável que seja assim, por outro, insiste em uma fratura fragilizada na atualidade. A inevitabilidade do símbolo é um fator histórico. Ele foi entendido pelos românticos como um momento de totalidade, uma capacidade de concisão que aparece de repente e ilumina a noite escura (CREUZER apud Benjamin, 1984). Esses fragmentos de entendimentos instantâneos surgem em momentos cruciais da vida, em constante progressão e acompanhando o fluxo do tempo (GRÖES apud Benjamin, 1984). A dramaturgia de Lama pode ser percebida como uma materialização de imagens de tempos distintos que se dão a ver no mesmo momento. Ela está marcada por um jogo simbólico na construção das palavras que firmam uma performance que nos remete invariavelmente para outros significados, abrindo possibilidades para a cena transgredir o espaço da pequena sala do Teatro Imprensa. A força do símbolo aqui parece estar mesmo no fato de que não temos total conhecimento dos significados dos termos utilizados para formar os jogos de palavras, mas percebemos uma inadequação, um ruído na comunicação e, por isso, construímos sentidos que não estão previstos. A palavra, assim, surge com um potencial que lhe é próprio, ou seja, o de ser um meio para a comunicabilidade.

Essa composição dramatúrgica fornece um simbólico em um estado curioso de instabilidade. Ele acaba funcionando em uma performance alegórica. Alegoria pode ser entendida como uma coisa oferecida pela fabricação que inclui o material do qual é feita, porém, dá idéia diferente da que se anuncia. Alegoria, então, pressupõe a utilização de coisas distintas na sua fabricação que, assim e só assim reunidas, remetem à outra coisa que não se dá por uma adição literal das partes implicadas no objeto. Em termos de linguagem “A alegoria (grego allos = outro; agourein= falar) diz b para significar a.” (HANSEN apud Cícero, 2008). Dentro desta perspectiva, a alegoria é um desvio no significar, uma vez que ela diz b para significar a. Na linha desse paradigma, a beleza da dramaturgia está em nos indicar que nossas ações (no presente) carregam um prisma de possibilidades. Isso confere ainda significado para seu teor apocalíptico, ou seja, imprime seu teor de revelação.

Admitir o valor do símbolo como rescaldo do alegórico pode ser o modo possível de dar-lhe sentido na contemporaneidade. Quando Lama assume essa tensão na dramaturgia e na encenação, ambas ganham força , não como imposição de reiterações de sentidos, mas como blocos de sensações (DELEUZE) que transpassam nossos afetos. Isso se dá na opção de construção da peça como um continente sensorial logo ao início dos fragmentos de músicas que o espectador frui no escuro. Fragmentos reconfigurados como a operação do alegorista. Os fragmentos musicais nos remetem ao pop/samba,/popular,/hip hop e estão misturados com a insistência de uma única música que repete que as coisas têm de morrer – costura que é o teor de tudo que se (des)constrói. As referências musicais nos situam no resgate das vanguardas e sinalizam o “depois de tudo”.

A intenção da concisão simbólica é contraposta por seu avesso em progressão alegórica e quando isso acontece é que a peça cria instâncias inacabadas como um salto no abismo. Assim, as asas elaboradas por Pedro Alcântara – modulação entre objeto cenográfico e indumentário, raras vezes visto com tamanha clareza de condição – não servem para voar, na medida em que a força da cadeira de rodas, na qual os personagens parecem cimentados, prevalece como um incômodo semelhante às pequenas disparidades da vida que ganham dimensões de verdade. A imagem problematiza a investida do sentido angélico dos personagens, mas os esculpe em um paradigma ondulante que as falas iniciais projetam com força de suspeição. Se há suspeita, ela existe por essa conjunção que insere os espectadores em um limbo semelhante ao dos personagens presos em suas cadeiras refletindo a condição dos primeiros.

Aqui transparece o trabalho técnico dos atores que o diretor denomina de “Ator em Repouso” e que foi operado conjuntamente com a co-direção de Joana Levi. De um modo sucinto pode-se dizer que se trata de uma pesquisa atorial que investiga os impulsos corporais que são as bases das manifestações psíquicas. O ator, externamente, é o menos possível e sua força de ação é, por assim dizer interna, na medida em que interno e externo ficam mimetizados assim como os paradigmas sujeito e objeto. O que resta de movimentação para os atores está na potência do olhar, o que sobredetermina sua condição de espectadores (RANCIÈRE, 2008), somente interferida pelos pequenos movimentos espasmódicos que executam e a coreografia de Mudras ao final. Os atores Priscilla Carvalho e Leonardo Ventura faturam essa técnica com dedicação, porém, em Ventura ela ganha fisionomias precisas por meio de um registro de interpretação que se lança no mínimo e de uma limpeza vocal que constrói imagens psíquicas pelo princípio alegórico. Seu trabalho investe no melhor sentido do que chamamos presença, algo absolutamente tangível que, ao mesmo tempo, nos remete ao infinito.

O Primeiro Dia Depois de Tudo formaliza alguns bons sinais de caminhos quando promove a ativação dos atores e dos espectadores pela sobre-determinação de alusões e menos quando resolve a coesão por meio do drama. A coreografia de Mudras instiga por que é um enigma, os personagens provocam nossa imaginação quando são impróprios ou desconhecidos, os fragmentos musicais ressoam porque estamos no blackout, os atores têm força de ação por meio da imobilidade.

Referências Bibliográficas:

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.

CÍCERO, João. Benjamin e Agamben – a história como um enigma indecifrável. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2008.

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? São Paulo: Ed. 34, 2005.

RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Tradução de Daniele Avila in Questão de Crítica, 2008.