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sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O Apocalipse como revelação do momento presente

Crítica, por Dinah Césare em http://www.questaodecritica.com.br/2010/10/o-apocalipse-como-revelacao-do-momento-presente/

Um futuro que poderia ter acontecido – uma tensão temporal que formaliza as possibilidades de um desejo que já nasce morto. Essa é a composição da dramaturgia dos personagens Beatriz e Roberto que se expressam pela ironia e incerteza do futuro do pretérito em O Primeiro Dia Depois de Tudo, escrito e dirigido por Leo Lama, em cartaz na sala Vitrine do Teatro Imprensa em São Paulo. A atualidade do combate entre os efeitos causados pela presença e pelo sentido formaliza a dramaturgia e a encenação como escritas de um único fôlego que evidenciam uma espécie de necessidade de salvação da transitoriedade.

A questão crucial da peça parece ser justamente sua intervenção como poética permeada por uma composição simbólica que, se por um lado é quase inevitável que seja assim, por outro, insiste em uma fratura fragilizada na atualidade. A inevitabilidade do símbolo é um fator histórico. Ele foi entendido pelos românticos como um momento de totalidade, uma capacidade de concisão que aparece de repente e ilumina a noite escura (CREUZER apud Benjamin, 1984). Esses fragmentos de entendimentos instantâneos surgem em momentos cruciais da vida, em constante progressão e acompanhando o fluxo do tempo (GRÖES apud Benjamin, 1984). A dramaturgia de Lama pode ser percebida como uma materialização de imagens de tempos distintos que se dão a ver no mesmo momento. Ela está marcada por um jogo simbólico na construção das palavras que firmam uma performance que nos remete invariavelmente para outros significados, abrindo possibilidades para a cena transgredir o espaço da pequena sala do Teatro Imprensa. A força do símbolo aqui parece estar mesmo no fato de que não temos total conhecimento dos significados dos termos utilizados para formar os jogos de palavras, mas percebemos uma inadequação, um ruído na comunicação e, por isso, construímos sentidos que não estão previstos. A palavra, assim, surge com um potencial que lhe é próprio, ou seja, o de ser um meio para a comunicabilidade.

Essa composição dramatúrgica fornece um simbólico em um estado curioso de instabilidade. Ele acaba funcionando em uma performance alegórica. Alegoria pode ser entendida como uma coisa oferecida pela fabricação que inclui o material do qual é feita, porém, dá idéia diferente da que se anuncia. Alegoria, então, pressupõe a utilização de coisas distintas na sua fabricação que, assim e só assim reunidas, remetem à outra coisa que não se dá por uma adição literal das partes implicadas no objeto. Em termos de linguagem “A alegoria (grego allos = outro; agourein= falar) diz b para significar a.” (HANSEN apud Cícero, 2008). Dentro desta perspectiva, a alegoria é um desvio no significar, uma vez que ela diz b para significar a. Na linha desse paradigma, a beleza da dramaturgia está em nos indicar que nossas ações (no presente) carregam um prisma de possibilidades. Isso confere ainda significado para seu teor apocalíptico, ou seja, imprime seu teor de revelação.

Admitir o valor do símbolo como rescaldo do alegórico pode ser o modo possível de dar-lhe sentido na contemporaneidade. Quando Lama assume essa tensão na dramaturgia e na encenação, ambas ganham força , não como imposição de reiterações de sentidos, mas como blocos de sensações (DELEUZE) que transpassam nossos afetos. Isso se dá na opção de construção da peça como um continente sensorial logo ao início dos fragmentos de músicas que o espectador frui no escuro. Fragmentos reconfigurados como a operação do alegorista. Os fragmentos musicais nos remetem ao pop/samba,/popular,/hip hop e estão misturados com a insistência de uma única música que repete que as coisas têm de morrer – costura que é o teor de tudo que se (des)constrói. As referências musicais nos situam no resgate das vanguardas e sinalizam o “depois de tudo”.

A intenção da concisão simbólica é contraposta por seu avesso em progressão alegórica e quando isso acontece é que a peça cria instâncias inacabadas como um salto no abismo. Assim, as asas elaboradas por Pedro Alcântara – modulação entre objeto cenográfico e indumentário, raras vezes visto com tamanha clareza de condição – não servem para voar, na medida em que a força da cadeira de rodas, na qual os personagens parecem cimentados, prevalece como um incômodo semelhante às pequenas disparidades da vida que ganham dimensões de verdade. A imagem problematiza a investida do sentido angélico dos personagens, mas os esculpe em um paradigma ondulante que as falas iniciais projetam com força de suspeição. Se há suspeita, ela existe por essa conjunção que insere os espectadores em um limbo semelhante ao dos personagens presos em suas cadeiras refletindo a condição dos primeiros.

Aqui transparece o trabalho técnico dos atores que o diretor denomina de “Ator em Repouso” e que foi operado conjuntamente com a co-direção de Joana Levi. De um modo sucinto pode-se dizer que se trata de uma pesquisa atorial que investiga os impulsos corporais que são as bases das manifestações psíquicas. O ator, externamente, é o menos possível e sua força de ação é, por assim dizer interna, na medida em que interno e externo ficam mimetizados assim como os paradigmas sujeito e objeto. O que resta de movimentação para os atores está na potência do olhar, o que sobredetermina sua condição de espectadores (RANCIÈRE, 2008), somente interferida pelos pequenos movimentos espasmódicos que executam e a coreografia de Mudras ao final. Os atores Priscilla Carvalho e Leonardo Ventura faturam essa técnica com dedicação, porém, em Ventura ela ganha fisionomias precisas por meio de um registro de interpretação que se lança no mínimo e de uma limpeza vocal que constrói imagens psíquicas pelo princípio alegórico. Seu trabalho investe no melhor sentido do que chamamos presença, algo absolutamente tangível que, ao mesmo tempo, nos remete ao infinito.

O Primeiro Dia Depois de Tudo formaliza alguns bons sinais de caminhos quando promove a ativação dos atores e dos espectadores pela sobre-determinação de alusões e menos quando resolve a coesão por meio do drama. A coreografia de Mudras instiga por que é um enigma, os personagens provocam nossa imaginação quando são impróprios ou desconhecidos, os fragmentos musicais ressoam porque estamos no blackout, os atores têm força de ação por meio da imobilidade.

Referências Bibliográficas:

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.

CÍCERO, João. Benjamin e Agamben – a história como um enigma indecifrável. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2008.

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? São Paulo: Ed. 34, 2005.

RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Tradução de Daniele Avila in Questão de Crítica, 2008.

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