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sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Amores alados, dores terrenas

Crítica de Valmir Santos em seu site: http://teatrojornal.com.br/blog/2010/11/amores-alados-dores-terrenas/

Se escrever, não dirija. Os dramaturgos dão de ombros para isso. Samir Yazbek, Mário Bortolotto, Claudia Schapira, Roberto Alvim e Newton Moreno, entre outros, estão cada vez mais apossados da cena. Também. Em sua produção sazonal e de soslaio, Leo Lama se assume espirituoso na busca pelo que se deduz uma reza, um mantra sobre os conflitos de que são feitos o teatro e a vida. Particularmente quando a dois, como no microcosmo da experiência mais recente, O primeiro dia depois de tudo. A peça de 20 anos atrás ganhou um novo tratamento sobre a enésima história de amor. Tornar a palavra imagem é que são elas.

Lama vai a Dante Alighieri e Beatriz, o amor da musa idealizada pelo poeta, para falar da realidade de seu tempo. Purga a relação de um casal em seu estágio derradeiro. Se os diálogos e as passagens narradas abrem janelas a ironias e estados ridículos dos enamorados em crise, a encenação não alivia em sua austeridade. Essa tensão leva o espectador a partilhar o labirinto existencial com intimidade que o espaço exíguo da Sala Vitrine, no Teatro Imprensa, só faz colaborar.

Na parábola, Beto e Beatriz perderam o movimento do corpo. Resta-lhes a cabeça. A razão e as asas – a plumagem branca salta armada das omoplatas dos seres vestidos de luto, cada um em sua cadeira de roda. A imobilidade (oposição sustentada sob preparação corporal de Joana Levi) é ponta de lança da direção. A paralisia, a base preta dos figurinos, o desenho de luz espectral (por Fábio Retti), os blecautes caudalosos, toda a atmosfera melancólica vem confirmar que o inferno não são os outros, mas eles mesmos, os sujeitos protagonistas.

Importa notar em O Primeiro Dia Depois de Tudo o dramaturgo desconstruindo o amor romântico com “uma tragédia poética”, como ele chama, atento à liquefação cotidiana, rindo da traição e da posse, pasmado diante da inconsequência dos sentidos e afetos abortados. E, principalmente, o dramaturgo capaz de ser outro enquanto encenador, distanciar-se como inventor de linguagem cênica que amplia os horizontes do texto ao “aprisioná-lo”.

Somos surpreendidos ao ouvir de Leo Lama, por meio dos personagens, que não existe remédio no teatro para as dores de amores. Um autor em mutação permanente que permite ao eu diretor mãos lapidadas e ousadas como não vimos até aqui na carreira. Se for preciso dizer alguma coisa, é a linguagem, uma teatralidade de pulsos beckettianos que vai gritar ou silenciar sob um texto bem estruturado para assuntar o banal e o convencional nos dias de hoje. O discurso na chave negativa revela luminoso o amor de pés nos chãos, menos idílico. É o que se depreende da voz e do pensamento de um homem e de uma mulher contemporâneos, por Priscilla Carvalho e Leonardo Ventura, cúmplices decisivos nesse processo de anjos urbanos caídos. Na simbologia erguida por Lama, aleijões da alma e do corpo rogando por ouvidos, oscilando o que foram e o que gostariam de ter sido. Na condicional.

Foto de Heloísa Bortz.

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